Picaretas S/A
Trabalhos explicitamente canalhas são uma prática infeliz em carreiras criativas. Mais: jogos de tabuleiro, animações, MTV Brasil, Ivete, Gorillaz, pixel art, Flashback
Edição 9 • 15 de outubro, 2020
HÁ ALGUMAS SEMANAS, UM CASO bizarro num post do LinkedIn viralizou também em outras redes sociais. Nele, um suposto fundador de uma pequena empresa contava, em tom de bravata, que havia descartado uma candidata porque ela se recusava a fazer entrevista num domingo e pedia que fosse numa segunda-feira. Algo natural, só que, segundo o indivíduo, ele não poderia porque usa os dias de semana "para trabalhar". Oi? Prefiro nem colar esse tipo de imbecilidade aqui na Mondo, mas se quiser mais detalhes, tem aqui.
O fato me fez lembrar de uma série de "causos" que já me ocorreram na minha carreira, nos últimos 16 anos. São propostas, pedidos e trabalhos tão descarados que ferem o que se considera moral — e ético — numa relação profissional. Por isso, preste atenção a empresas (ou “profissionais”) do tipo Picareta S/A: os trabalhos, pedidos ou ofertas “inocentes” que, de tão explicitamente vergonhosos, indecorosos e imorais, precisam ser expostos.
Tais jobs são o produto principal de picaretas aproveitadores do esforço alheio, sendo que não estão restritos a recém-formados nem a profissionais com pouca experiência. Nesse momento de crise econômica e social do país, o LinkedIn tem muitos deles — aliás, por essa e outras razões, eu a considero uma rede tão tóxica quanto o Facebook atualmente.
Além disso, é algo que tem total relação com a forma como você se enxerga como profissional: vale a pena se submeter a uma relação de trabalho que já começa abusiva e aberta à exploração do seu conhecimento e esforço? É preciso ter calma e analisar as trocas envolvidas, para entender se vale ou não entrar numa dessas.
Assim, deixa eu contar aqui alguns exemplos do que já vi, fui exposto ou passei, embora, por alguma sorte, tenha tido tempo de perceber a furada e tentar resolver ou mesmo evitar as armações desses picaretas:
"Trabalho" via mensagem do LinkedIn
Esse está se tornando um clássico: a figura entra em contato por mensagem da rede social, elogiando seu trabalho e currículo e perguntando se você estaria interessado em um job que está totalmente dentro do seu perfil — já devidamente verificado pelo picareta, de acordo com suas necessidades. A conversa se desenrola, ficam combinados prazos, entregas e demais detalhes do suposto projeto. Só a questão do pagamento que fica sempre em meio a frases dúbias e pouco claras, não por acaso. Se você começar a pôr a mão na massa, pode apostar que perdeu seu tempo, sem pagamento.
Freela com horário de trabalho de 8h por dia/40h por semana
Essa obscenidade está tão em alta quanto trabalho PJ sem garantias e pagamento abaixo do mercado. Mas, por maior que seja a necessidade, abra o olho: não existe contrato de trabalho freelancer com cumprimento de carga horária obrigatória. Se acontecer, existe uma figura jurídica chamada "subordinação", que pode indicar vínculo empregatício. Portanto, se liga.
Teste técnico de habilidades em pré-entrevista de emprego
Aconteceu comigo há algum tempo e ficou de lição. Curiosamente, foi para uma grande empresa de e-commerce do Brasil (na verdade, uma das maiores). É preciso esclarecer que, queira ou não, você já estará trabalhando para a empresa, seja da maneira que for, sem ser pago por seu tempo. Uma coisa é entrevista técnica; outra, é um teste. Você enviará um possível entregável que, caso nem seja usado diretamente pela companhia, pode acreditar que ficará arquivado como mais um conteúdo/material de consulta para futuros projetos. Você garante que não será usado, nem mesmo como "inspiração"? Ora, se uma empresa não tem a capacidade de entender se um candidato é bom ou não para seu processo seletivo a ponto de precisar de um teste prático na área, então alguém não cumpre bem seu papel. Essa prática é nova, mas de acordo com o que for pedido, melhor ligar o sinal amarelo.
"Posso usar seu conteúdo? Te dou créditos e ainda adiciono seus links..."
Não. A não ser que eu queira ou precise ter meu nome ligado a algum site ou publicação que, de outra maneira, possivelmente não aconteceria se não fosse assim. Essa a forma mais fácil que muitos sites, revistas e até jornais fazem para ter bom conteúdo de graça. Mas, se pensar que, hoje em dia, é tão mais simples compartilhar seu conteúdo e expor seu nome nas suas próprias redes, é difícil ver vantagem numa "proposta" dessas.
Reunião inicial de projeto levando qualquer tipo de “plano”
Aconteceu há alguns anos: fui chamado pela empresa — uma das maiores do ramo de shoppings no Brasil — para tomar conhecimento do projeto, conhecer e equipe e acertar o trabalho. Convite aceito, no dia seguinte recebi outra ligação na qual pediam que levasse uma sugestão de um “plano de desenvolvimento” e mostrasse outros projetos. Achei incomum, ignorei o pedido e dei como desculpa outros projetos em paralelo para não ter uma plano em mãos. Serviu, também, para dizer que o tal plano seria uma etapa posterior e, pra minha surpresa, acabou funcionando.
Criar designs e conteúdos em troca de exposição
Nesse, tentam convencer dizendo que é para "ganhar experiência". Acho que até os mais novos no mercado já perceberam que isso é papo-furado. Se quiser fazer, tendo consciência que é de graça, não há problema — cada um sabe de si. Mas, você também ganha exposição e ainda pode praticar criando seus próprios projetos autoiniciados, lembre sempre disso. Assim também se monta um portfolio.
Ajustes indefinidos
Isso é super comum em trabalhos freelancer, mas pode ser evitado. O cliente finge não saber, você finge nem notar e, para não perdê-lo, se submete a infindáveis horas de retrabalhos e ajustes, por um valor que já fora previamente acertado lá no começo, não cobrindo esses novos ajustes. O melhor é incluir no contrato a quantidade total de ajustes possíveis no projeto.
Acredito que existam ainda vários outros tipos de picaretagem profissional. Em todos esses e outros exemplos, você tem o direito de aceitar ou não o que oferecem e fazer o que bem entender no momento. Mas, vale lembrar que seu conhecimento e experiência não surgiram do nada, de um dia para o outro — houve um tempo de muito trabalho e aprendizado envolvidos, o que tem um valor imenso que merece ser respeitado.
Quanto ao caso abordado no início do texto, soube que o tal “empreendedor” acabou apagando o post e se desculpando pelo que havia feito — aquela história de sempre, com o mesmo papo de só admitir depois da repercussão negativa, porque quer lacrar, parecer cool e fazer o mesmo que falsos influencers postam pra ganhar curtidas. Para mim, se trata de caráter e valores, acima de tudo. Porque, se não houver o “chiado” das redes, a prática vai em frente, o que também contribui para tornar o ambiente de muitas empresas verdadeiros palcos para psicopatas corporativos (sim, eles existem): tóxico demais, nocivo demais. Abre os olhos. ■
Mix
Uma visão da vida criativa na mídia nesta semana: Dois empreendedores americanos estão ganhando milhões com jogos de tabuleiro. O boom neste tipo de negócio criativo aumentou depois da pandemia, mas não se engane: eles não começaram neste ano. Na Forbes. @@ O site Vulture listou e analisou as 100 sequências que definiram o cinema de animação (ilustração acima). Tem muitas cenas clássicas que você até deve conhecer, de Disney, Pixar, Ghibli, Akira, Simpsons etc, mas começa lá atrás, no século 19! @@ É preciso publicar livros polêmicos ou devemos cancelar seus autores? No Tab, uma breve discussão sobre o tema, que é muito mais profundo do que parece. @@ A Wired desvenda um pouco do mundo dos criadores de planners e sua comunidade virtual — que bombou neste ano. Mostra como esse nicho prospera no Instagram e no You Tube, movimentando milhões e virando mais um lifestyle do que técnica de produtividade. @@ Evan Kinori é um designer de moda americano que tem uma grife de um homem só, na qual ele faz literalmente tudo: cria peças em edições limitadas que são numeradas à mão, envia um bilhete escrito por ele mesmo para quem compra, cuida do Insta e ainda cobra caro por peça — um tipo de “capitalismo sustentável”. Bela história na Exame. @@ Ao Infinito... E além! ✘ Alexandre Bobeda
❖ Hoje é Dia do Professor. Eu já fui um, mas na verdade nunca deixarei de ser — está na alma. A você, professor, professora, minha reverência! 👏🏻
Play
O que curti nos últimos dias e recomendo:
Posters que mudaram o mundo, no Guardian.
A nova música da Ivete Sangalo, Dura Na Queda, que é bem bonitinha e a nova do Gorillaz com o Elton John, The Pink Phantom.
Pixel art que traz de volta os anos 80!
Um guia visual para escolher a fonte certa quando você não sabe o que usar.
A lista revisada da Rolling Stone com os 500 maiores álbuns de todos os tempos.
Conectado com a nova seção abaixo e já falando na MTV Brasil, segue um documentário sobre os 23 anos que o canal teve no país. Vale pelas entrevistas e depoimentos de ex-VJs e artistas que sempre davam as caras no canal. Bota essa nostalgia pra funcionar! Ô, saudade desses bons tempos...
Flashback
Nova seção: a criatividade do passado, para inspirar o presente.
No próximo dia 20, completam-se
30 anos que a MTV Brasil estreava no país
: a original e única, da Abril. Só quem viveu sabe… Abaixo, o anúncio de lançamento do canal, que saiu numa edição da revista
Veja
, em outubro de 1990. [
Disclosure: sabia que em 93 eu fiz entrevista pra ser VJ do canal? Nem te conto, foi ridícula!
🤣]
E ainda…
GIFInspiração
Não vou perdoar!
O quê (ou quem) você gostaria de xingar muito hoje? 😜
Como foi pra você esta edição da Mondo?
Como você já sabe, leio todos os comentários: pode escrever tudo o que quiser!
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Imagens: [Texto principal: Colagem, Alexandre Bobeda; Giphy | Mix: Giacomo Gambineri/Vulture | Flashback: Veja/Editora Abril | GIFInspiração: Google]