Mondo #8: Como o trabalho criativo mudou com o Napster
Seu trabalho nunca mais foi mais o mesmo graças, também, ao aplicativo. E ainda: Vaporwave, internet, filmes de terror, fotos, perguntas certas, colagem, Comando
Ano 1 • № 8 • 08 de outubro de 2020
NUMA SESSÃO DE PAPO NO WHATSAPP com amigos, recentemente, nós lembrávamos de como nossas vidas mudaram, profissionalmente, com a internet. Para mim, totalmente, não há dúvida! Foi libertador, porque creio, inclusive, que não estivesse fazendo o que faço hoje — não fosse pela minha "audácia", como já contei antes. Assim, lembrei nessa conversa que, em 2000, há exatos 20anos, costumava passar madrugadas em claro baixando mp3 pelo Napster. Era o tempo da internet discada, pela linha telefônica. Então, não só pelo valor que viria na conta, como também por manter a linha ocupada durante o uso, só mesmo depois da meia-noite, pagando só pelo acesso inicial, que dava pra usar internet à vontade. Nada profissional. Mas, não imaginava que o conceito desse aplicativo seria o início de um movimento bem maior, que se desdobraria nos anos seguintes.
Embora desde que usei a internet pela 1ª vez, meados de 1997, ainda na UFRJ, ouvia ou lia que era o espaço (ciberespaço, lembra? Bem anos 90…) onde as ideias poderiam — e deveriam — se espalhar livremente de uma pessoa para outra, ao redor do globo, natural que um aplicativo tão revolucionário pudesse criar uma ruptura no mundo do entretenimento e da criatividade. Só para lembrar, o Napster era uma controversa rede de compartilhamento de música p2p, que possibilitava que os usuários compartilhassem músicas sem pagar por elas. Assim, tornava impossível que os detentores de direitos autorais/copyright das músicas ou discos recebessem uma receita que, de outra maneira, teriam direito se as pessoas comprassem essas obras na forma de um CD, por exemplo.
Para mim, a palavra-chave é compartilhamento. Até surgir o Napster, eu, por exemplo, não fazia a menor ideia do que seria "dividir" minhas coisas com estranhos — ainda mais online, quando nem se sabia dos riscos reais de tudo isso e que só anos depois começou a ser explicado. Pois começamos dando mp3 para estranhos e, enquanto baixavam, trocávamos ideias ali mesmo, pelo aplicativo (não, naquele tempo era "programa" e lembro até de ter feito algumas "amizades" efêmeras dessa forma). Assim, os trocadores de mp3 online se tornavam clientes-amigos-parceiros, que tinham acesso livre ao "portfolio" uns dos outros. Bem utópico, se não estivéssemos falando de uma prática ilegal, que rendeu diversos problemas com o governo americano e com artistas.
Com tantas questões envolvidas, o Napster, da forma como o conhecemos há 20 anos, acabou. Hoje, é outra coisa completamente diferente. Contudo, de lá pra cá, existe mais produção criativa do que nunca na história, com mais pessoas criando conteúdo, com mais pessoas ganhando dinheiro como criadores de conteúdo e com mais dinheiro sendo gasto em conteúdo do que nunca antes. Em outras palavras, aquela ideia que artistas milionários, como Metallica e Dr. Dre, tentavam emplacar, de que a internet e o compartilhamento de arquivos de alguma forma matariam a criação e a indústria do entretenimento, é uma grande bobagem. Ao contrário, uma pesquisa mostra que a produção aumentou, já que as pessoas se deram conta de que elas mesmas teriam novas formas de distribuir seu conteúdo, suas criações.
Mas, você pode responder: "Ah, boa parte desse conteúdo é uma porcaria." Concordo parcialmente, já que existe ao menos um estudo, de 2013, que investiga isso e cujo resultado é, surpreendentemente, o oposto. A enxurrada de compartilhamento de conteúdo realmente criou coisas absolutamente excelentes (embora, ao mesmo tempo, muito conteúdo de baixa qualidade). Significa que existe mais conteúdo em todo um espectro de escolhas, atendendo aos mais diversos gostos. O trabalho criativo mudou para sempre.
Esse mesmo paper conclui que:
Com menos aplicação de leis de direitos autorais, provavelmente haverá maior qualidade na produção. Inversamente, a maior aplicação de leis de direitos autorais provavelmente levará à queda na qualidade, com menos benefícios sociais aos criadores.
Isto é, o desenvolvimento profissional dos criativos e criadores de conteúdos estaria relacionado à abrangência de leis que protegem os direitos autorais. Talvez não tenha sido por acaso que, depois de toda a polêmica causada pelo Napster e em meio a uma tensão dentro dos Estados Unidos em relação à validade do copyright, que o Creative Commons tenha surgido. Foi celebrado como uma "luz no fim do túnel" para criadores e criativos ao redor do mundo, que poderiam fazer uso de criações dos outros, desde que dessem o devido crédito. O Brasil foi um dos primeiros países a participar da iniciativa, através da FGV. Aliás, meu “primeiríssimo” ebook, um PDF que viria a ser o outro lado, lançado como livro tradicional em 2010, foi distribuído gratuitamente sob uma licença CC, em 2007. Passei pelo arquivo outro dia, no meu Dropbox, e qualquer dia mostro aqui… 😜
O que se viu, passada a polêmica do Napster, foi a onda dos blogs. Era possível ter um espaço todo seu na web através do qual, em vez de distribuir músicas que eram de terceiros — embora existissem blogs para isso — as pessoas distribuíam textos e informações para um público online, conhecidos apenas quando era possível fazer comentários (desde que não anônimos, claro!). Eu tive alguns blogs entre 2002 e 2006, que me levaram a fazer novos contatos e a ter textos publicados em sites como o Webinsider e revistas corporativas, como a T&D. Lembro, também, de ter lido muita coisa interessante nesse período. Era a internet dos anos 2000, na qual a sensação de pertencer a uma "comunidade de criadores/criativos" era grande, além de uma conexão, muito mais direta que a das redes sociais, com os leitores. Se você viveu o período, sabe que muitos escritores/blogueiros saíram dos blogs para empregos na mídia mainstream.
Nesse tempo, já vivíamos a época do remix, mostrando que, de fato, tudo é derivado. Ou seja: copiar, transformar e combinar. A criatividade é assim; a cultura(-pop) é assim — e isso não começou com o Napster. Só que, com o compartilhamento de criações e trabalhos, o remix se tornou algo explícito, natural e aceito. Inclusive, aprendi, num curso de criação de roteiros que fiz em 2015, na ESPM, que citar nominalmente os trabalhos que serviram de inspiração é parte das regras para se criar um documento de tratamento (argumento) de um roteiro, seja de filme ou série. Isto quer dizer que, quando você prepara o argumento, não há mal algum citar Stranger Things ou Smallville como inspirações. Porque sempre haverá uma inspiração, um modelo que servirá de ignição para a ideia inicial e consequente desenvolvimento do trabalho criativo. Dificilmente se consegue uma ideia completamente do zero. Dificilmente. Porque, reforço meu aqui, não existe mais aquela figura do "gênio" que surge do nada com uma ideia — o tempo de Picassos e da Vincis já se foi, há muito pra trás. E com toda a interconexão de hoje, não existem mais ideias que surjam do zero.
Quando nos demos conta de que tudo era um grande remix e que os blogs compartilhavam livremente as ideias de qualquer pessoa, nossa criatividade recém-libertada foi pra nuvem. De lá, guardávamos não apenas nossos arquivos, mas nosso trabalho de cada dia também. Um trabalho que poderia ser, em seguida, alterado e melhorado por colegas nas empresas. Que o digam Google Docs, Dropbox e outros aplicativos do tipo. Arquivos na nuvem, mas os trabalhos e projetos continuavam a ser compartilhados. A partir desse ponto, a vida digital mudou mais uma vez, acredito. O compartilhamento passou a ser "social", com as pessoas em comunidades online, fosse por afinidades pessoais (Facebook, Twitter) ou interesses profissionais (LinkedIn). Para a criatividade, também (Behance, Dribbble). Só que isso já é outro caminho, uma outra história...
Em resumo, por qualquer perspectiva que se analise, desde o ano 2000, com o lançamento do Napster, o trabalho criativo mudou — e melhorou. É a conclusão de um relatório de 2019, feito pela Copia, uma consultoria independente americana de inovação digital:
Nas últimas duas décadas, desde que o Napster chegou, a história que sempre foi contada é a de que a internet está destruindo as indústrias criativas, principalmente por meio da pirataria. No entanto, se pararmos e realmente olharmos para o que está acontecendo com essas indústrias, parece que precisamos mudar a narrativa. Para onde quer que olhemos, essas indústrias estão prosperando. Para onde quer que olhemos, a internet está ajudando essas indústrias de quase todas as maneiras. Além disso, a produção de conteúdo está aumentando bastante, com acesso mais fácil a públicos difundidos e ferramentas de produção ainda mais fáceis de usar.
Hoje, não há dúvida que a internet revolucionou a produção e disseminação de informações há, pelo menos, uns vinte e poucos anos. Mas, a contribuição do Napster é inegável, já que a capacidade dos indivíduos de criar e compartilhar suas ideias progrediu radicalmente junto com o avanço da tecnologia que o aplicativo propôs. A mentalidade mudou junto, com o compartilhamento se tornando parte das tarefas criativas, em projetos de todos os tipos. É só você pensar, rapidamente, quando foi a última vez que você trabalhou — qualquer que seja o seu trabalho — sem que suas criações tenham sido compartilhadas (e também mexidas e alteradas), para que se chegasse a um resultado final satisfatório. ■
Já que falei na internet em 2000…
O barulho da internet discada:
O download de uma foto de 1MB na internet:
O tempo que dava pra ouvir música na rua:*
*o iPod foi lançado em 2001.
Mix
O que li nos últimos dias: Achei curiosa a lista da Forbes, com atividades lúdicas para diminuir o estresse durante o home office. @@ No Eye On Design, uma bela análise sobre o Vaporwave (foto acima) nos últimos 10 anos — um gênero musical e um estilo de arte visual baseado na nostalgia dos anos 80 e 90, cujas criações parecem feitas no MS-Paint. @@ A Folha traz um texto interessante do NYT, com a história da Netflix contada por seu fundador. @@ A colagem, uma técnica de design que existe há décadas, está em alta de novo, segundo a Veja Rio. @@ Filmes de terror de baixo orçamento e muita criatividade têm surgido nesta pandemia, relata O Globo. @@ Uma análise do filme Comando Para Matar, aquele com Arnold Schwarzenegger, 35 anos depois do lançamento, na Esquire. Clássico dos anos 80, foi o 1º e único filme em que fui barrado no cinema por conta da censura! 😄 Oops, I did it again! ✘ Alexandre Bobeda
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O que curti nos últimos dias:
Estas imagens alucinantes, do fotógrafo Michael McCluskey, tiradas no norte de Michigan. O trabalho com o Photoshop é evidente, mas muito bem feito e parecem cenas de filmes de ficção-científica!
Este insta, da fotógrafa canadense, de Quebec, Arianne Clément, com lindas fotos em preto & branco de idosos. É a arte de envelhecer…
O documentário Console Wars, que é baseado no ótimo livro homônimo. Mostra a rivalidade Nintendo vs Sega nos anos 90: é interessante ver as ideias criativas nos anúncios em que ambas se provocavam. Porque marketing de guerrilha já existe faz tempo… Aliás, o doc é do CBS All Access, que ainda não foi lançado aqui — achei via torrents.
Dar uma volta pelo mundo com o Google Arts & Culture.
First Nation, nova do Midnight Oil; Diablo, de uma cantora sueca chamada Nea, que conheci por conta do estilo de design de sua gravadora, Milkshake (Sony Music) e Outside, solo de Eddie Chacon, que você talvez se lembre da dupla Charles & Eddie, one-hit wonders do início dos anos 90.
O episódio de Song Exploder sobre a criação e gravação de Losing My Religion, do R.E.M.. Muito do que é tratado aqui na Mondo está lá. No Netflix.
Vídeo interessante, no qual o investidor Tim Ferriss (o daquele livro sobre trabalhar 4 horas por semana), junto com um jornalista, uma geobióloga e um filósofo, falam sobre a relação entre a criatividade e fazer as perguntas certas — mesmo quando pareçam tolas. Com tantas informações circulando hoje, não é à toa que você sempre ouve, por aí, que fazer perguntas é importante. Principalmente para saber quais decisões tomar ao solucionar problemas.
Trivia - Logos sem títulos
Quais as marcas mostradas no gif abaixo, com esses logos sem nomes?
GIFInspiração
Acabou a pandemia?
A estupidez de alguns cariocas — e brasileiros — torna tudo por aqui mais difícil, não?
[ Resposta Trivia: Dreamworks, Skype, Nestlé e Monster. ]
Obrigado a você que deu sua opinião na Mondo da semana passada!
“Cada vez melhor! Continue!!” — Tô me esforçando... 😌
“Sempre excelente e reflexiva!” — Legal! É parte do propósito!
Valeu! 👍🏻
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Imagens: [Texto principal: Colagem, Alexandre Bobeda; Giphy | Mix: Eye On Design | Trivia: Google | GIFInspiração: Giphy]
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