Mondo #6: O preço da nostalgia
Revisitar o passado é algo bastante poderoso, mas é preciso voltar ao presente. Mais: Quase Famosos, designers, Tenet, 2000 AD, AOL, Ricky Martin, trivia
Ano 1 • № 6 • 24 de setembro de 2020
UMA CRÔNICA LANÇADA POR MIM como ebook em maio de 2014, Memória Apenas de Leitura, foi uma maneira de externar meus sentimentos imediatamente após minha mãe partir. A intenção era que fosse algo "terapêutico", que me ajudasse a me manter equilibrado e, ao mesmo tempo, a entender o período em que eu passaria a viver sem ter mais por perto aquela que me trouxe ao mundo. Só que não… Foi difícil, doloroso e até cruel comigo mesmo em diversos momentos, nos quais eu escrevia chorando. Analisando agora, à distância no tempo e com mais tranquilidade, nem sei por quê fiz isso. Por quê escrevi. Mas, está lá, na forma de pura nostalgia. Um tema que tem algo em comum com a Mondo da semana passada, mas, ao mesmo tempo, é diametralmente oposto.
Na série Mad Men, o protagonista Don Draper definiu a nostalgia de uma maneira certeira num dos episódios mais icônicos, no qual mostrava fotos em slides:
Nostalgia — é delicada, mas potente. Literalmente quer dizer "a dor de uma velha ferida". É uma agulhada em seu coração, de longe mais poderosa que a memória. Não é uma aeronave, é uma máquina do tempo. Vai para trás, para a frente. Nos leva para um lugar onde temos saudade de estar de novo. Nos permite viajar do jeito que as crianças viajam. Gira, gira e sempre nos traz de volta... ...para um lugar onde sabemos que somos amados.
É fácil se sentir desse jeito num mundo que parece estar evoluindo a uma velocidade alucinante e onde tudo muda, sempre. Logo, mergulhar na nostalgia é como se embrulhar em um confortável cobertor dos “bons e velhos tempos”, quando as coisas eram mais simples e não havia preocupações com feeds do Instagram, por exemplo. Só que é essencial saber lidar com esse sentimento, aproveitá-lo e sair dele. Falo por experiência própria — ou a vida, simplesmente, não anda.
Pesquisadores afirmam que a nostalgia dá à nossa vida uma sensação de continuidade e significado à medida em que envelhecemos, além de nos tornar pessoas mais tolerantes e mais generosas com estranhos. Também dizem que faz bem — e eu acredito! Como aquele velho Game Boy guardado no armário ou uma coleção, agora em alta, de discos de vinil: ambos nos lembram de quando éramos mais jovens e, esses momentos, mais divertidos. Muito bem. Eu confesso que adoro a sensação de reviver o passado com boas doses de nostalgia, mas, há cerca de dois anos, tive que passar por algumas sessões de terapia justamente para resolver isso, já que o impacto emocional era tamanho e influenciava meu comportamento profissional.
Então, depois dos dois piores anos da minha vida, 2014 e 2015, quando perdi meus pais, eu entrei num espiral nostálgico no qual tudo o que conhecia — lugares, filmes, livros, músicas, discos, coisas, tudo — era marcado por "antes e depois" deles. Ou seja, bastava ouvir uma música, ver um filme, voltar a determinado lugar etc, para que um gatilho mental fosse disparado e eu passasse minutos (ou horas) dos meus dias mergulhado em lembranças e muita nostalgia. Não vou entrar em detalhes aqui, mas era como se um objeto ou lugar me fizesse "voltar" na memória a algum momento em que, aquilo, tivesse relação com meus pais. Quase sempre dava um certo alívio, mas o preço, a carga emocional, era muito alto para se pagar. O tema da crônica que escrevi, no ebook citado no início deste texto, é um reflexo direto disso. Na história, um velho computador é o "gatilho" para trazer à tona lembranças e acontecimentos do passado — eu só preferi não deixar claro, no livro, o motivo de tê-lo escrito. Talvez, uma forma de sublimar os sentimentos na época, o que nem sempre é bom.
Logo, não tive escolha a não ser fazer algumas sessões de terapia. Nestas, identificou-se que minha vida pessoal, com suas memórias afetivas, afetava tanto o lado profissional que eu me encontrava "profundamente desconectado" do presente. Que eu deveria deixar o passado ir, para que pudesse viver a nova realidade que aconteceu. Talvez por isso muita coisa não fizesse sentido depois desse período, como suportar empregos abusivos, pessoas arrogantes, gente que tentasse fazer com que eu me sentisse menos do que sou ou situações estúpidas. Se houve um lado bom nisso, foi eu ter "ligado o foda-se" para certas coisas… É, foi isso. 😎
[Interferência aqui: posso dizer que a nostalgia que senti depois de um período tão triste na minha vida estendeu meu luto por alguns anos a mais do que deveria. Hoje, me sinto bem e entendo que lidar com a nostalgia é inevitável. Mas, é preciso saber manter uma certa distância para que se possa viver o presente.]
Ao mesmo tempo, serviu para mostrar o que eu, simplesmente, não queria mais na minha vida. A "cura" dessa fase que vivi mostrou que eu precisava deixar minha personalidade fluir, depois de guardá-la por força dos mais diversos ambientes corporativos dos quais fiz parte ao longo dos anos anteriores, com suas regras implícitas ou explícitas. Em resumo, fui aprendendo a ser "Eu" novamente, deixando as amarras que, junto com meus amados pais, se foram. Tipo "fisioterapia da alma", sabe? Ou seja, nostalgia e luto se misturaram num amálgama de sentimentos que, te digo daqui, não foi fácil. Lembro de lutar comigo mesmo para trazer de volta minha capacidade criativa em trabalhos que, em outros momentos, foram absolutamente simples e tranquilos de realizar. Ou de tentar raciocinar, em reuniões de projetos, e não conseguir. Era como se eu tivesse perdido “meus poderes” e minha capacidade de realização fosse tão profunda quanto um pires. Lembro do caso da cantora Marina Lima, que no período de criação e gravação do belo disco O Chamado, de 1993 (recomendo!), entrou num período complicado após a morte do pai. Ela abordou o assunto brevemente nesta entrevista na Folha, em 1995. E, sim, pode apostar, para um criativo, fatos como esse têm um impacto tremendo na vida como um todo. Afinal, a criatividade tem a ver com sensibilidade e percepção do mundo à nossa volta.
Acontece que, de uma forma ou de outra, com ou sem "gatilhos emocionais", a nostalgia está presente no mundo de hoje. O marketing que o diga: estudos sugerem que a nostalgia inspira os consumidores a gastar seu dinheiro porque promete um retorno imediato em forma de lembranças felizes e um certo conforto. É por isso que as campanhas criativas que adicionam um pouco de nostalgia têm se tornado cada vez mais populares nos últimos anos, à medida em que as marcas começam a descobrir o valor de se conectar com seus clientes num nível profundamente emocional, por mais superficial (e, porque não, artificial) que esse tipo de nostalgia possa ser. Em outras palavras, essas campanhas de marketing que abordam a nostalgia não são apenas uma estratégia de venda, são também um fenômeno psicológico.
Natural, já que, quando os anos passam, todos desenvolvemos boas lembranças de nossos dias de juventude, desde a comida que comíamos aos jogos que jogávamos e até a música que ouvíamos. Afinal, nossas experiências do passado são o que ajudam a formar nossas personalidades e identidades no presente. No meu caso, bem particular, eu juntei tudo isso com a saudade dos meus pais, no pior momento em que poderia tê-lo feito. Portanto, por mais conforto que a nostalgia e as lembranças do passado possam trazer, aprendi que era preciso deixar tais lembranças e os sentimentos relacionados num "baú" que, de certa forma, guarda um imenso tesouro. Só que esse mesmo tesouro não nos pertence mais — ou faz parte do passado — e precisa ser deixado lá atrás, com todo o cuidado que merece, para que a vida possa seguir adiante e seja possível tomar decisões, fazer novas escolhas e viver o presente. Deve ser por isso que existem museus…
Seja como for, revisitar o passado sempre fará parte do meu trabalho, porque é de onde vem boa parte de minhas referências. É como uma “nostalgia pessoal”, ou lidar com aspectos do passado, como o anseio ou desejo por pessoas, coisas ou a forma como a vida era em algum momento que já se foi. De qualquer forma, vou continuar a ouvir músicas antigas, mas as novas também. O mesmo vale para os filmes ou para qualquer outra coisa, porque é essa mistura que favorece a criatividade. Aqui do meu canto, acredito que a nostalgia pode até mesmo trazer um pouco de luz num dia nublado.
O mundo anda meio estranho e as coisas tão diferentes do que a gente esperava há algumas décadas, que tentamos criar uma ponte para voltar a outras realidades do passado que nos agradavam imensamente, mas que ficaram apenas na memória e, infelizmente, não voltam mais. O jeito é saber cuidar desse baú chamado nostalgia e seguir vivendo o presente da melhor maneira possível — cada um tem a sua, sempre tem.
Foi a lição que aprendi. ■
Bônus
Se você quiser abordar (ou sentir) a nostalgia e aproveitar esse sentimento de maneira positiva, tente os filmes abaixo. Considero que cada um trata o tema de uma maneira diferente, mas todos provocam alguma reflexão:
Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004)
Ghost (1990)
Meia-Noite em Paris (2011)
Vanilla Sky (2004)
O Show de Truman (1998)
A Vida em Preto e Branco (1998)
Up (2009)
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Mix
O que li nos últimos dias: O diretor de Quase Famosos (2000) conta histórias e memórias do filme na Rolling Stone, na qual ele próprio foi jornalista. @@ No Vox, uma geral de tudo o que não rolou (ou foi adiado) na indústria do entretenimento neste ano, por conta da pandemia. @@ O que os designers gráficos precisam fazer para se adaptar aos tempos digitais? Um professor do IED Brasil conta no TAB. @@ Mesmo com a estreia do blockbuster do momento, Tenet, de Christopher Nolan (foto acima), os cinemas estão ficando vazios neste período. O New York Times tenta apontar uma saída pra isso. Difícil, viu? @@ O Recode/Vox mostra que a Realidade Aumentada/AR pode ser uma nova maneira de fazer reuniões de trabalho. Interessante! @@ A tradicional 2000 AD, uma revista semanal de quadrinhos britânica, conseguiu sobreviver nesta pandemia e até aumentar os números do negócio, com assinaturas e vendas por canais independentes. No What's New In Publishing. @@ A Fast Company analisa como ficará a vida dos nômades digitais durante e depois deste momento bizarro em que vivemos. @@ Na Esquire, porque o filme Showgirls virou cult, 25 anos depois do lançamento. Eu gosto! @@ A gente ouviu tanto falar de lockdown, que até se acostumou. Agora, o Tab traz o debate sobre o uso de estrangeirismos. Eu, evito quando dá ou “deve”. @@ Uma entrevista bem legal com Ricky Martin, na Rolling Stone. @@ Por conta da pandemia, a forma de gravar cenas de beijo no cinema e na TV mudou. Agora, até manequim entra nessa! No Globo. @@ Bang! ✘ Alexandre Bobeda
Play
O que curti nos últimos dias:
Um slideshow na Rolling Stone com fotos da "realeza" do rock dos anos 80, como Guns N' Roses, Van Halen, Steven Tyler e outros.
Um episódio do podcast Hit Parade, que tenta diferenciar os artistas que vivem/viveram de um sucesso só, os one-hit wonders. Não concordei muito não, mas é divertido…
Stereo, versão acústica da música de 2005 do Max de Castro no novo EP Moska Apresenta Zoombido: Max de Castro.
Pandemic, um belo doc curtinho que traz a visão bastante pessoal e curiosa de pessoas comuns sobre os impactos da pandemia no mundo. Lançado em agosto e filmado em abril em várias cidades, como SP, por uma dupla de diretores baseada em Londres (Pedro and James), é curioso ver, agora, depois do auge, o quão desesperador foi esse período para todos.
Emoji com olhos de espiral, que é bem a cara de 2020!
Ney À Flor da Pele, doc sobre o grande Ney Matogrosso dirigido por Felipe Nepomuceno. No canal Curta!. (Btw, Ney é um dos melhores artistas ao vivo que já vi!)
Transfiguration (2020), um curta minimalista incrível que é um primor em CGI/efeitos visuais. É puro deleite visual e sonoro pra curtir mesmo, apenas.
Trivia - Pílula vermelha ou azul
De qual filme estamos falando?
GIFInspiração
"Olá, você está online!"
Já que falei em nostalgia… (Nota: a AOL foi meu provedor por um tempo, na época da "internet discada". Muitos achavam que internet era só aquilo lá dentro; hoje, muitos acham que internet é o próprio Facebook.)
[ Resposta Trivia: Matrix (1999). ]
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